sexta-feira, 23 de abril de 2010

Tradição



Em meados da década de 50, nascia Olavo, filho de Maria de Lourdes e José Antônio. Os três faziam parte de uma família totalmente tradicionalista e religiosa. Não chegavam a ser ricos, mas tinham os dotes que Amaurílio deixara para o seu neto, Olavinho, há muitos anos atrás.
Moravam em uma casa modesta e o único objeto mais refinado que tinham era uma poltrona que ficava no centro da sala. De fato, o tal objeto fazia parte de uma tradição e sempre era passado adiante.
Foi no leito, antes da morte de seu pai que José, irmão de mais três garotos, recebeu a herança. Obviamente a reação dos irmãos já era de se esperar; todos ficaram enciumados e queriam por que queriam desobedecer ao último pedido do pai.
Acreditavam que a decisão estava errada porque Zé era o caçula da família. Diziam que ele era desengonçado e que nunca se casaria. Que viveria sozinho e sem nenhum vintém para se manter.
Já com vinte e sete anos, depois de três anos da morte de Amaurílio, Zé calou a boca de seus irmãos. Arrumou um emprego e foi por lá mesmo que conheceu Lourdinha. A moça beirava seus 20 anos, era linda, cabelos vistosos. Inteligente e assistente de modista.
Não recebia muito bem pelas oito horas que trabalhava de segunda a sexta. Mas o salário era o suficiente para sustentar a mãe e a si própria. E era exatamente isso que o rapaz admirava. Gostava da coragem de Lourdes, do jeito que ela andava, falava, de tudo.
Em um dia de chuva, ao sair do expediente, Zé avistou a moça dos cabelos vistosos parada, esperando que o céu parasse de chorar. Não deu outra. Ofereceu o braço, ela aceitou, e ambos saíram andando debaixo daquele guarda-chuva todo surrado e comprado em uma liquidação.
Começaram a conversar e quebrando todos os costumes, se beijaram logo no primeiro encontro. Muito dizem que amor rápido, acaba do mesmo jeito. Mas não. Meses depois já estavam casados e ele, como sempre desejou, não morava mais com o que restou da família.
Alugaram uma casa. Compraram móveis usados e deixaram à herança no centro da sala. Pouco a pouco foram fazendo sua pequena fortuna. Queriam ter um filho. “Onde come dois, come três também.”
Primeira tentativa, frustrada. Segunda, também. Desistiram. E foi na poltrona, depois de quase um mês separados, que Olavo foi concebido. Talvez tenha sido a saudade, a falta um do outro ou até mesmo o amor que tenha colaborado para que o filho tenha sido gerado.
Nove meses de uma gestação complicada e cheia de enjôos por parte de Lourdinha, nasce de seu ventre, uma criança totalmente estranha. Não houve choro ao apanhar do médico. Não abriu os olhos depois dos primeiros dias de vida.
Nada disso importava perto do amor que os pais já tinham. E na segunda semana depois do nascimento levaram o menino para casa. De fato, não havia progresso. Não houve progresso até os três anos de idade.
Aos quatro começou a falar perfeitamente; parecia um adulto. De ver a mãe lendo, aprendeu a ler sozinho. De tanto ler, aos onze já era mais inteligente que os dois juntos.
Não precisou de escola, de tutor ou de qualquer coisa do tipo. Tinha dom com as palavras, por isso decidiu ser escritor.
Escrevia como ninguém. Depois da morte dos pais em um acidente, aos 21 anos, vendeu a antiga casa, pegou a herança e partiu para outra cidade. Queria ter vida nova, começar do zero.
Conseguiu contrato com uma editora. Publicava seus livros quase que mensalmente e pouco a pouco foi conseguindo tudo o que queria. Uma casa no centro, um automóvel na garagem. Só faltava um amor.
Durante todos os anos de sua vida, procurou em várias moças algo que nunca foi capaz de encontrar. Adélia, Aurélia, Marília. Juliana, Francisca, Alessandra. Prometia amor eterno a todas elas. Era um homem de muitas amantes.
As que dizia que amava mais, levava para a casa. Trancavam-se sempre na biblioteca durante uma semana. Ninguém sabia o que faziam por lá. Só a poltrona era testemunha de tudo.
Certa vez, um criado me contou que Sr. Olavo levou uma moça diferente para lá. Não era Adélia, muito menos Juliana e nenhuma das que sempre recebia juntos aos livros. Disse também que dessa vez foi diferente. Ficaram trancados, juntos, há quase um mês.
Achando estranho, resolveu arrombar a porta. E o que encontrou? Olavo sentado na poltrona, descamisado, com os olhos parados no ar e um sorriso nos lábios. Morto.

- E a moça?
- Não estava mais ali. Talvez tenha levado consigo meu patrão e seu último suspiro de amor.

6 comentários:

pequeno erudito disse...

Ah Gabi, não chega nem a ser um elogio dizer que você escreve bem, é apenas uma constatação do que é tão claro.

Sua escrita me prende e eu vou, sem pressa, investigando cada linha e me surpreendendo ao final.

Bjs.

Nilton.

Unknown disse...

Adorei tamanha imaginação em seu conto, cada linha uma surpresa e o final, totalmente surpreendente.
Fascino-me com teus textos. Eu, não chorei quando nasci. HAHA Mas enfim, parabéns pelo texto, querida.

Ed Curvello disse...

Gabi, impressionante sua capacidade de expressão e narrativa, parabéns, não precisa nem ser um gênio pra saber que vc vai longe e eu quero dedicatória especial do seu livro hein...rsrs
Continue sempre escrevendo que eu vou continuar sempre lendo.

beeijos..

Ed C.

André Luiz . disse...

Quem me dera ter metade da sua criatividade e 1/3 do seu talento na hora de compor um texto, são todos geniais!

hortelacomcanela disse...

"Durante todos os anos de sua vida, procurou em várias moças algo que nunca foi capaz de encontrar. Adélia, Aurélia, Marília. Juliana, Francisca, Alessandra. Prometia amor eterno a todas elas. Era um homem de muitas amantes."

sabe oque dizer esta moça!
ó gabes, uma história como esta a gente ve em muitos coraçoes, mas tao bem escrita assim eu ainda nao tinha visto! Beijo fia!PAZ

Unknown disse...

Tão comun lermos historias clichês... com finais totalmente obvios, que terminan de maneira bonitinha e não impresionam em nada, Porem Gabizinha sempre me surpreendendo. AMei o texto, adorei ve-la escrevendo este estilo. a historia me supreendeu o que ja a torna boa, porque saiu do obvio e isso a mim agrada muito. AMmei mesmo.